“Canto a vozes de mulheres” foi a designação criada numa sessão plenária no dia 1 de março de 2020 por cerca de 360 cantadeiras para referir uma expressão vocal coletiva, com três ou mais vozes polifónicas sem acompanhamento instrumental, mantida viva por mulheres, por vezes com o apoio de homens nas vozes mais graves, ao longo de sucessivas gerações, em comunidades do centro e norte de Portugal continental. Nas comunidades onde se faz cantar e ouvir, o canto a vozes de mulheres tem designações distintas, sendo conhecido como cantada, cantaraço, cantaréu, cantarola, cantarolo, cantedo, cantiga, cantiga em lote, cantoria, cramol, moda, modas de campo, ou terno.
Estas polifonias femininas têm uma profunda implantação histórica no Centro e Norte de Portugal, nas antigas províncias da Beira, Entre-Douro-e-Minho e Trás-os-Montes. Estes cantos de mulheres tiveram um papel central na sociedade rural agro-pastoril durante séculos, até aos anos 80-90, do século XX: faziam-se ouvir no trabalho agrícola coletivo, das sementeiras às colheitas, na apanha da azeitona, na limpeza e preservação das florestas e nas festas e rituais religiosos como a “Encomendação das Almas”. O progressivo desaparecimento desses contextos performativos conduziu ao progressivo silenciamento do canto a vozes de mulheres. No século XXI, são pouco mais de trinta os grupos de mulheres que detêm este saber cantar específico. Fazem-no em momentos de partilha de conhecimento e de divertimento coletivo, em convívios privados, ou públicos, como as festas da aldeia, em eventos de celebração da ruralidade ou turísticos. É de assinalar o facto de este “saber cantar a várias vozes” ser transmitido entre grupos de mulheres que mantêm ou reabilitam esta tradição no seio das suas comunidades dando, inclusive, origem a novos grupos de cantadeiras que se fazem ouvir em novos contextos.
No século XXI, o canto a vozes de mulheres vincula as cantadeiras e os cantadores na salvaguarda do saber fazer tradicional, na coesão das comunidades em que se inserem e na desocultação do papel das mulheres nos processos e práticas culturais, nomeadamente ao atualizar o conhecimento e memória coletivos no espaço público das suas comunidades. Nestes contextos, é um identificador da cultura local e um importante agregador social, capaz de religar conterrâneos e familiares dispersos em diferentes geografias por sucessivos fluxos de migração. O canto a vozes permite às mulheres serem interlocutoras na atividade cultural local. Essa interlocução faz-se pela ocupação dos espaços públicos, pelos atos em que são mestras, pela oportunidade de assumirem papéis de liderança dentro dos grupos e das comunidades onde residem e pela oportunidade de se expressarem como um coletivo – as mulheres. De modo a enfrentar as múltiplas e rápidas transformações que ocorreram e ocorrem nas suas comunidades, nomeadamente o desaparecimento dos contextos tradicionais de transmissão do canto a vozes de mulheres, as cantadeiras detentoras desse conhecimento e memória organizam-se em grupos informais ou formais, instituindo-se como coletivos com estatutos próprios ou agregando-se a coletividades locais. Maioritariamente os elementos destes coletivos mantêm entre si afinidades familiares, de vizinhança, mas principalmente de pertença, ligação e representação a uma comunidade local.
Este modo de cantar a vozes distingue-se de outros cultivados noutras geografias da Europa e constitui um testemunho-chave para a história da música em Portugal, pelas semelhanças que evidencia, por exemplo, relativamente às polifonias medievais (Caufriez, Anne, Northern Female Plyphonies, in Musiké (International Journal of Ethnomusicological Studies, edited by Keith Howard, School of African and Asian Studies, London, Semar ed., p. 147 et 148). Uma tão impressionante tradição de polifonias de mulheres, quer seja pela sua extensa presença territorial quer pela tão grande quantidade de cantadeiras deve ser reconhecida, valorizada e preservada. Existem referências a esta expressão vocal coletiva datadas do século XVII. Desde o início do século XX, foi extensamente documentado nas coleções de transcrições musicais e registos sonoros de folcloristas, etnógrafos, coletores e músicos como Gonçalo Sampaio, Armando Leça, Vergílio Pereira, Artur Santos, Michel Giacometti, Fernando Lopes-Graça, José Alberto Sardinha e Tiago Pereira.