Estudo de mulheres

Mediação na prática do Cante Alentejano: o caso do alto

Celina da Piedade (INET-md | NOVA FCSH

Na prática coral do Cante Alentejano convenciona-se actualmente a existência de três papéis vocais diferentes. Tal como consta no dossier de candidatura do Cante Alentejano a Património Imaterial da Humanidade da Unesco, “Compostas por até 30 membros, as vozes de cada grupo coral estão organizadas em três faixas: ponto, alto baixos (coro). O ponto, na faixa inferior, começa o canto, seguido do alto, uma voz na faixa mais elevada que duplica a melodia uma terceira ou uma décima acima do ponto, muitas vezes ornamentando-a. A seguir ao alto vem uma parte a solo ou, entrando a partir do ponto, o grupo coral completo canta os restantes versos da moda em terceiras paralelas. O alto é a voz guia que se sobrepõe ao grupo”.

Como investigadora e como artista envolvida nesta prática tenho notado a crescente dificuldade dos grupos corais em agregarem integrantes que saibam ou se arrisquem a fazer o alto, figura central na performance do Cante em grupo. Essa falta agrava-se nos grupos corais femininos, sobretudo naqueles formados mais recentemente. Com o tempo, nada mudando na dinâmica actual do Cante, a tendência será haver cada vez menos quem saiba performar esta linha melódica e possa passar o testemunho a novos cantadores.


Com a minha investigação pretendo abordar duplamente esta questão emergente: por um lado entender as circunstâncias e mecanismos que a provocaram, incluindo o papel o mais recente processo de patrimonialização do Cante, e por outro criar uma estratégia, no âmbito académico da Etnomusicologia Aplicada (Pettan e Titon 2015), traduzida em diversas acções efectivas que procurem ensinar, mediar e promover a transmissão deste saber, como oficinas, ensaios e concertos, em colaboração com diversos grupos corais e outras entidades ligadas ao Cante, como o Centro Unesco para a Salvaguarda do Cante Alentejano (Beja) e a Casa do Cante (Serpa), e também um trabalho continuado com os alunos do projecto “Cante nas Escolas”, no concelho de Beja, no qual estou inserida como formadora. 


A festivalização da música tradicional

Jean-Yves Durand (CRIA-UMinho)

Além de óbvias diferenças de escala organizativa e económica, existem agora festivais dedicados aos mais variados temas, embora com uma maior representatividade de algumas áreas culturais, entre as quais a música (com variações consoante os géneros). A partir de uma observação etnográfica centrada sobretudo no pequeno festival de música tradicional Castro Galaico, criado há 10 anos numa freguesia peri-urbana de Braga, pretende-se descrever e analisar o protagonismo e o sucesso crescente que o modelo do “festival” tem conhecido nas últimas décadas.

Qual tem sido o papel deste tipo de contexto performativo no contexto da reapropriação e resignificação da música folclórica em Portugal? Como coexiste com as diversas reformulações da noção de “festa” e com as recentes numerosas revitalizações de práticas festivas tradicionais e recriações inspiradas em períodos históricos diversos?

Neste panorama, qual é o lugar específico da música “celta” na busca mais ou menos assumida de “raízes” e de “autenticidade”, em particular nas representações e nas vivências das relações entre Minho e Galiza? Tentar-se-á, portanto, distinguir as eventuais especificidades e definir o consequente nicho de um pequeno festival local, de cariz amador, perante o pano de fundo da evolução histórica, em particular na Europa, e no ecossistema global desta modalidade contemporânea de presença social da música tradicional.


“Este som que se sente cá dentro!”: conexão, subjetividade e memória social na prática dos bombos

Lucas Wink (INET-md | Universidade de Aveiro)

Esta é uma investigação de doutoramento em curso sustentada em referencial teórico da Etnomusicologia, da Antropologia e dos Sound Studies e que toma como universo de observação, participação e análise o contexto dos bombos, uma prática social reiteradamente cultivada em diferentes localidades de Portugal. O estudo centra-se em trabalho etnográfico realizado juntamente ao Grupo de Bombos Regional de São Simão Os Completos e ao Grupo de Bombos da Casa do Povo do Paul. Em ambas localidades, os bombos têm marcado acontecimentos e memórias há cerca de 80 anos, justificando a manutenção de construtores artesanais, a transmissão intergeracional de saberes associados a esta prática e a reunião regular dos agrupamentos para ensaios e performances. Mais recentemente, tem-se realizado trabalho de campo juntamente ao Grupo de Bombos de São Sebastião de Darque.

Tendo em conta (i) a presença expressiva dos bombos em Portugal e a escassez de estudos sistemáticos; (ii) o conjunto de juízos depreciativos em torno da percussão e, em particular, dos bombos e da sua prática; (iii) a possibilidade do delineamento de novas narrativas trazidas pela área transdisciplinar dos Sound Studies no que toca, por exemplo, à poética e à política das relações sociais, a intersubjetividade e aos comportamentos expressivos humanos, colocam-se desafios nos estudos sobre as práticas e sobre os instrumentos musicais em Portugal. Nesse sentido, centrando no contexto em questão, este projeto tem como objetivo geral contribuir para a reflexão, discussão e desenvolvimento de abordagens centradas no estudo do som no âmbito das práticas e dos instrumentos musicais populares portugueses. Constituem alguns objetivos específicos da investigação: i) compreender os valores, sentidos e processos de participação na vida social na prática dos bombos nos contextos em observação; (ii) identificar as relações que se estabelecem entre meios de produção e resultados performativos; (iii) compreender a articulação entre música, som e espaço na performance dos bombos.


Sustentabilidade, futuro e identidade no Grupo Folclórico Dr. Gonçalo Sampaio

Pedro Moreira (INET-md | NOVA FCSH)

Os grupos etnográficos em atividade na atualidade, na sua dimensão musical e coreográfica, enfrentam diversos desafios que se prendem com a manutenção das tradições que representam, com a história e legado do grupo, com dimensões do enquadramento associativo, assim como com questões relacionadas com a renovação do seu tecido de associados, músicos e dançarinos. 

Partindo do caso do Grupo Folclórico Dr. Gonçalo Sampaio, sediado em Braga, fundado em 1936 e em atividade quase ininterrupta desde então, pretende-se refletir acerca da sua resiliência, sustentabilidade e manutenção. Neste sentido, importa considerar um percurso que se cruza com as políticas folcloristas implementadas no período do Estado Novo (Castelo-Branco e Freitas Branco, 2003), com a ligação a duas figuras relevantes do mundo das recolhas etnográficas, nomeadamente Gonçalo Sampaio e Mota Leite, com a manutenção da sua atividade no período democrático e, mais recentemente, com a resiliência do grupo no sentido de manter a sua atividade e pensar em estratégias de continuidade e sustentabilidade das suas práticas musicais e coreográficas.

Deste modo, a investigação proposta partirá de 4 objetivos gerais:

1. Perceber os grandes pilares identitários que emergem não apenas dos discursos oficiais dos interlocutores, mas também das vivências e experiências de pertencer ao grupo;

2. Aprofundar qual a relação entre a atividade do grupo e a ligação aos dois nomes que parecem legitimar a autenticidade da sua prática musical e coreográfica, nomeadamente Gonçalo Sampaio e Mota Leite;

3. Estudar os processos de transmissão do legado musical e coreográfico no seio do grupo, com especial enfoque nos significados atribuídos pelos interlocutores;

4. Estudar as estratégias desenvolvidas e aplicadas num quadro de resiliência, continuidade e sustentabilidade do próprio grupo.

Partindo dos dados recolhidos através do trabalho de campo (entrevistas, observação não participante, análise documental) importa problematizar conceitos como sustentabilidade, resiliência ou tradição por forma a refletir acerca de diferentes contingências e dimensões em jogo nos processos de manutenção e continuidade de práticas musicais tidas como tradicionais (Schippers e Grant 2016; Titon 2009).


Cantar a vozes no século XXI: processos musicais como parte de um ecossistema

Rosário Pestana (INET-md, Universidade de Aveiro)

O processo que conduziu ao reconhecimento da UNESCO do cante alentejano, estimulou mulheres a organizarem-se para inscreverem na matriz do Património Cultural Imaterial o seu conhecimento de outras práticas polifónicas de matriz rural. As iniciativas dirigem-se aos grupos de cantares dos quais fazem parte, aos poderes locais, à academia, à criação de redes de comunicação com grupos de outras localidades e à organização de encontros com detentoras de repertórios e competências específicas desse modo de cantar. Esse canto a duas, três ou mais vozes femininas, podendo a mais grave ser duplicada por homens, gera no século XXI novas ações sociais, assumidamente por mulheres, num enfrentamento interventivo e crítico das dinâmicas sociais atuais. A sustentabilidade destes processos musicais que rememoram saberes tradicionais em novos contextos e práticas sociais, são o foco da análise do estudo. Interessam-me questões como a sustentabilidade de sistemas musicais complexos, nomeadamente, a sua correlação com a prática social reiterada e a transmissão de conhecimento; a ética do bem comum e da vida social pública; a participação intersubjetiva no fazer da música e a criação de redes de comunicação potenciadas pelo canto a vozes no século XXI. Pretendo, também, conhecer as cantadeiras que agenciam este projeto e analisar os processos sociais e políticos que contextualizaram as ações de documentação e de institucionalização desta prática performativa, numa cartografia relacional e afetiva. 

Documentadas desde finais do século XIX por diferentes folcloristas, as diferentes formas de canto a vozes de mulheres não foram apropriadas pelo discurso folclorista do regime do Estado Novo e foram periféricas no processo de refundação do folclore em democracia. 

Este estudo surgiu do convite para que estudasse o “canto de mulheres” ou as “polifonias rurais”, no século XXI em Portugal, formulado por algumas das mulheres agentes neste processo. Sou, por isso, uma agente no processo em estudo.

Palavras-chave: música e sustentabilidade; ecossistemas do som; canto polifónico feminino; música e ativismo; música e género. 


A “voz” de Isabel Gomes Silvestre: Processos de translocação nos domínios do local e do global

Rui Chã Madeira (INET-md | Universidade de Aveiro)

A investigação que estou a desenvolver para o projeto EcoMusic – Práticas sustentáveis: um estudo sobre o pós-folclorismo em Portugal no século XXI, relaciona-se com a minha proposta de tese ao programa doutoral em música, especialização em etnomusicologia, que denominei A “voz” de Isabel Gomes Silvestre: Processos de translocação nos domínios do local e do global. A etnomusicóloga Maria do Rosário Pestana, na sua dissertação de mestrado em relação às cantigas de Manhouce coloca a questão “Quais são as representações que sustentam a redefinição de cantigas de Manhouce com Isabel Silvestre?” (Pestana 2000: 128). A investigadora reflete que (…) “Esta é uma questão que carece de estudo, mas a sua resposta passa forçosamente pelo quadro das novas relações sociais estabelecidas” (idem, ibidem). Considerando que a indagação será o ponto de partida da minha tese de doutoramento, proponho inteirar-me sobre o percurso de Isabel Silvestre e respetivas relações musicais e sociais estabelecidas; as indústrias da música a partir da (…) “análise do percurso da solista Isabel Silvestre que disseminou um conjunto de competências musicais (…) na indústria da música associada ao folclore e ao pop/rock” (Pestana 2011: 1) e a relação entre os domínios do local e do global, propostos, entre outros, por Guilbault (2006), Connell e Gibson (2004), Erlmann (1996) e Bhabha (1994). Pelo disposto, a minha proposta de tese enquadra-se nos objetivos do projeto EcoMusic quando inscreve as práticas da música folclórica portuguesa no século XXI em contextos sociais, políticos e económicos associados aos media, aos mercados globais da world music, aos conflitos entre criatividade e comércio/audiências, autenticidade e versões de mundo, no contexto dos festivais de música e das indústrias da música.

Nesse sentido a investigação que neste momento estou a desenvolver para o projeto assenta numa abordagem interdisciplinar, articulando metodologias de trabalho de campo com práticas de investigação colaborativa, nomeadamente pesquisa de fontes históricas e análise bibliográfica, observação participante, entrevistas, diálogo com a cantadeira Isabel Gomes Silvestre, com investigadores, produtores e músicos. Tenho como propósito produzir conhecimento sobre: (1) o impacto social (integração, participação e criatividade) e económico dos processos de patrimonialização e das políticas do município de São Pedro do Sul no âmbito da salvaguarda e revitalização da música folclórica portuguesa no concelho, (2) conhecer sobre o percurso musical e cultural da cantadeira desde o seu início até à atualidade na sua perspetiva e na perspetiva de outros, (3) analisar o percurso musical da cantadeira desde a primeira incursão em 1961 até à atualidade como solista no grupo As Vozes de Manhouce (4) compreender se os conceitos de world music e indústrias da música se apropriam ao contexto e (5) realizar uma etnografia visual em coautoria com a cantadeira Isabel Gomes Silvestre sobre as suas várias dimensões como cantora, coletora e promotora, assim como em relação ao seu percurso social, político, cultural e musical.

Mais informação: Sons da Nossa Terra – Etnografia musical do concelho de São Pedro do Sul


Música, turismo, desarrollo y sostenibilidad. Algunas cuestiones recientes

Susana Moreno Fernández (Universidade de Valladolid | Facultad de Filosofía y Letras)

En las últimas décadas, especialistas en disciplinas como la etnomusicología, la antropología social, la sociología, la geografía, los estudios en turismo o los estudios sobre eventos nos invitan a problematizar la sostenibilidad de las culturas musicales en una sociedad crecientemente globalizada y a examinar el rol de celebraciones y eventos en torno a la música y la cultura como herramientas para contribuir a preservar y actualizar géneros y prácticas de música y danza, alentar la dinamización musical, sociocultural, turística y económica o fomentar el desarrollo y la regeneración territorial. 

En Portugal resultan escasos los trabajos en materia de ecología de la cultura abordados desde una perspectiva etnomusicológica, entre los cuales se cuentan las aportaciones de Maria do Rosário Pestana (investigadora principal de este proyecto) y de mi propia como miembro del equipo investigador del mismo. 

Con la intención de ahondar en estas cuestiones, como contribución a este proyecto propongo una revisión crítica de literatura relevante para, junto al examen de la misma, y en diálogo con ella, presentar algunas reflexiones que se desprenden, por un lado, de mi investigación de campo llevada a cabo en Terras de Miranda (Tras-os-Montes) acerca de festivales, celebraciones y eventos musicales organizados principalmente por asociaciones y entidades culturales de la zona con algún apoyo de la administración del gobierno local. Por otro lado, de las aportaciones ofrecidas por otros académicos que han llevado a cabo investigaciones sobre esta materia en diversas localidades portuguesas en años recientes.

Palabras clave: música, turismo, desarrollo, sostenibilidad, ecología de la cultura